Depois de alguns dias sem postar, por causa de muito trabalho e compromissos, Graças a Deus!
Trago pra vocês e libero para cópia mais um trabalho feito para o curso de Psicanálise, corrigido pelo Dr Ruivaldo Nolasco, Presidente da IBRAPCHS (Instituto Brasileiro de Psicanálise Clínica, Ciências Humanas e Sociais).
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Sigmund Freud |
Tema: Culpa e Rejeição
Observei que, ao estudar o sentimento de culpa e
rejeição, até certo ponto, são característicos da vida em sociedade (aspecto
demonstrado nos textos estudados como, por exemplo, Moral Sexual Civilizada,
Totem e Tabu e O Mal-Estar na Civilização), ao mesmo tempo em que demonstra ser
uma consequência importante das organizações sociais por mantê-las, pode trazer
também consequências extremamente destrutivas para os indivíduos.
Segundo
a doutrina freudiana, pulsão de vida e pulsão de morte caminha sempre ao lado
uma da outra, a força das idéias de Freud, pesquisas, teorias e seu
trabalho clinico foram contundentes para que a psicanálise ganhasse o respeito
e a aceitação nao apenas na comunidade médica mas também em outros segmentos
acadêmicos.
1 – Culpa
O sentimento de culpa é sempre entendido por Freud
como decorrente da renuncia à satisfação pulsional. Essa renuncia teria origem
no medo da perda do amor do outro de quem o sujeito é dependente. Freud
denomina de superego a instancia que existe renuncia, é como expressão de uma
desarmonia fundamental no interior do sujeito e em sua relação com o mundo que
o termo superego pode ser entendido. Na pulsão de morte veiculada por essa
instancia, Freud descobre uma radical impossibilidade de harmonia do sujeito
com os ideais da civilização.
É nesse sentido que ele descreverá o mal-estar
expresso sob a forma de sentimento de culpa como intrínseco à civilização.
Freud relata o seguinte sobre o superego: ele é
formado pelo resíduo das primeiras escolhas feitas pelo sujeito e também pode
ser caracterizado como uma formação reativa contra essas escolhas, pois estas
são incestuosas, e mantê-las poderia acarretar dano ao ego, que se vê obrigado
a renunciá-las.
O sentimento de culpa seria uma forma de
manifestação deste medo e expressaria a angustia sentida pelo ego quando não
consegue se colocar a altura das exigências do superego, e por isto teme ser
punido por ele. O superego vem desempenhar, portanto,
o papel que era próprio à autoridade externa, exigindo renúncia pulsional e
punição. A diferença entre o superego e as autoridades externas é que o
superego é onisciente em relação aos desejos inconscientes. O resultado é que
“uma ameaça de infelicidade externa – perda do amor e castigo por parte da
autoridade externa – foi permutada por uma permanente infelicidade interna,
pela tensão do sentimento de culpa” (Freud 1930, p. 131).
A origem do sentimento de culpa,
superego, está diretamente vinculado com o tema da ética. O superego surge, na
verdade, em decorrência do fracasso do princípio do prazer em eliminar o fator
pulsional, cujo aumento gera desprazer ao aparato psíquico (Miller, 1991). Essa instância seria a última tentativa (após
o fracasso do princípio do prazer) de promover um ordenamento dos investimentos
pulsionais, exigindo a renúncia pulsional em função de um bem maior, que seria
o ideal do ego. Contudo, o sentimento de culpa revela que esta tentativa também
fracassa. O fracasso manifesta-se da seguinte maneira: o fator pulsional não é
de todo eliminado, há sempre um resíduo nessa operação que torna infinita a
exigência de renúncia pulsional, e o sujeito se sente culpado por não estar à
altura de responder ao ideal do ego. Freud remete à pulsão de morte o fator
pulsional que resiste a ser ordenado pelo principio do prazer e que se
manifesta através do superego. A partir da analise da neurose obsessiva, da
histeria, da melancolia e também do masoquismo, Freud conclui que a pulsão de
morte pode ser tratada de três modos:
1 – ela pode se tornar inofensiva por
meio da fusão com componentes eróticos;
2 – ele pode ser desviada para o mundo
externo sob a forma de agressividade;
3 – ela pode continuar seu trabalho
interno de estorvo, ao se voltar contra o próprio sujeito. É o retorno da
agressividade renunciada ao ego o que constitui o superego; a força que põe em
funcionamento o superego é derivada da pulsão de morte, que impedida de se
manifestar no mundo externo volta sua violência contra o próprio ego (Freud,
1924), portanto, a própria renuncia a satisfação gera a sensação de culpa.
Freud então conclui que existe uma satisfação com a própria renuncia a
satisfação, isto é, o que vai sustentar a renuncia pulsional será a satisfação
com esta renuncia, quanto mais se renunciar, mais o superego exigirá renuncia.
O que deveria impedir a satisfação se satisfaz com a atividade de exigir a
renuncia, quanto mais o sujeito atender a essa exigência, mais culpado ele se
sentirá.
Nesta satisfação, sentida como
desprazerosa pelo ego, encontra-se a fonte dos motivos éticos, essa é a
conclusão a que Freud chega ao analisar o sentimento de culpa.
1.2 – Culpa Universal e Individual
Em muitos textos,
especificamente em "Totem e Tabu" (1913), "Psicologia de Grupo e
Análise do Eu" (1921) e "O Futuro de uma Ilusão" (1927), Freud
apresenta o antagonismo irremediável entre as exigências da sociedade e a moção
pulsional, considerando tal incompatibilidade como ameaça constante à
sobrevivência da civilização, uma vez que os impulsos agressivos e hostis
sempre procuram um meio para se expressar. É exatamente por isso que a
civilização se beneficia do agente interno que vigia o sujeito e o condena com
a emergência da culpa. Após inúmeras reflexões e trabalhos, em 1929, em "O
mal-estar na cultura" Freud conclui que a civilização consegue, de uma
maneira ou de outra, dominar o perigoso desejo de agressão, enfraquecê-lo,
desarmá-lo e estabelecer no interior do sujeito um agente para conter o desejo.
Isso porque esse agente – o supereu – vigia o eu e está pronto a condená-lo,
intensificando o sentimento de culpa que sustenta a civilização. Para chegar a
essa conclusão Freud teve de percorrer um trajeto minucioso de pesquisas e
investigações em que ora se destaca a universalidade da culpa, na tentativa de
explicar o cerne da civilização, ora se atenta à neurose e à culpa que
atormenta o sujeito.
Em "Atos obsessivos
e práticas religiosas" (1907), Freud elabora certa comparação que pode
auxiliar na compreensão da culpa em suas variáveis individual e coletiva. Ao
tratar de cerimonial como um conjunto de condições que devem ser preenchidas,
Freud aponta que o ritual obsessivo aparenta ser um cerimonial, com a diferença
de que no cerimonial religioso todo e qualquer detalhe é significativo e possui
algum sentido simbólico, enquanto o ritual obsessivo é destituído de qualquer
sentido manifesto e parece absurdo, inclusive ao próprio obsessivo, que, apesar
de não conseguir escapar ao ritual, reconhece a falta de lógica em seus atos.
A investigação psicanalítica
dilui o aspecto absurdo dos atos obsessivos ao revelar que eles possuem um
sentido inconsciente e que é pelo mecanismo de deslocamento psíquico que ocorre
a substituição do elemento real e importante por um trivial. Assim, tem-se que
o ritual obsessivo surge como um ato de defesa ou de segurança, uma espécie
de medida protetora; sendo que o que está oculto para o sujeito é a
conexão entre a ocasião em que a angústia surge e o perigo que ela aponta.
Comparativamente, verifica-se que as práticas devotas nos cerimoniais dos
indivíduos religiosos também se caracterizam como empreendimentos cujo
principal objetivo é a execução de medidas protetoras, que visam
garantia de segurança.
Freud percebe que tanto
cerimoniais religiosos como rituais obsessivos surgem com duas características:
a de buscar proteção contra impulsos hostis internos (tentação/pecado) e evitar
o mal esperado (um castigo, punição ou penitência). Percebe também que existem,
em ambos, leis e proibições, cuja função é expiatória. Em seguida, Freud trata
da formação da religião, que se baseia na supressão ou renúncia de certos
impulsos instintuais – dos quais procedem, por exemplo, os mandamentos –, e
verifica que o sentimento de culpa resultante de uma tentação contínua e a
angústia sob a forma de temor da punição divina são conhecidos há mais tempo no
campo da religião do que no campo das neuroses. Posteriormente, a renúncia dos
impulsos será abordada na obra freudiana como elemento crucial, juntamente com
a intensificação do sentimento de culpa, das bases do desenvolvimento da
civilização.
Diante dos paralelos e
analogias entre neurose obsessiva e religião, Freud (1907/1969) conclui:
"pode-se considerar a neurose obsessiva um correlato patológico da
formação de uma religião, descrevendo a neurose como uma religiosidade
individual e a religião como uma neurose obsessiva universal" (p. 116).
As relações entre a
religião, que mitiga a culpa universal, e a neurose obsessiva, que acolhe a
culpa individual, aparecem também em "Leonardo da Vinci e uma Lembrança de
Sua Infância" (1910), no qual Freud fala sobre a ousadia e independência
intelectual de Leonardo. Dentre muitos aspectos de sua genialidade, Freud se
interessa justamente pelo que parece ser apenas um "detalhe" na
história daquele homem tão brilhante: sua fria rejeição da sexualidade. Freud
afirma que os afetos do gênio italiano eram controlados e submetidos à
pesquisa, o que não significa que ele fosse insensível à paixão, ele apenas
"convertera sua paixão em sede de conhecimento... entregando-se à
investigação com a persistência, constância e penetração que derivam da
paixão" (Freud, 1910/1969, p. 69). É notável a capacidade que Leonardo
desenvolveu de sublimar seus impulsos sexuais, tanto em suas expressões
artísticas como em sua curiosidade e interesse intelectual. Segundo Freud, esse
destino só foi possível porque a libido escapou ao recalque, podendo ser
investida e sublimada em suas pesquisas.
Freud verifica ainda fato
e característica importantes na história de Leonardo: a ausência de seu pai
durante sua tenra infância e a minuciosidade com que ele fazia anotações em um
diário, o que lhe chamou atenção, pois apontava uma possível neurose obsessiva.
A falta do pai explicaria a fraqueza do mecanismo de recalque, indicando a
existência das pesquisas sexuais infantis não inibidas e, por conseguinte, a
aparente ausência do sentimento de culpa. Além disso, o convívio com a mãe
biológica, pobre e abandonada, bem como sua decepção com os desdobramentos da
fantasia do abutre, possivelmente estão na origem do
sentimento de repulsa que desenvolveu por mulheres.
Freud atenta em diversos
momentos para a curiosidade infantil e demonstra que a especulação das crianças
sobre a vida sexual produz fundamentos concretos ao psiquismo e se relaciona
com a culpa. O pensamento vigente à época era o de que a sexualidade emergia
apenas com a puberdade, mas Freud descreveu a sexualidade infantil e se
contrapôs à ideia de que a sexualidade concerne apenas à idade adulta. Assim, a
criança pode atribuir a si mesma uma imensa culpa por sua curiosidade infantil,
ou ainda a culpa derivada do medo de perder o amor dos pais ou do temor da
punição, o que pode gerar inúmeros desdobramentos futuros. Tal compreensão, se
não justifica, ao menos explica a marcante independência que Leonardo apresenta
em relação a seus próprios sentimentos e também aos demais seres humanos, não
necessitando e nem dependendo de qualquer figura de autoridade.
Freud resgata a ideia da
necessidade humana de se apoiar em alguma autoridade, já que o ser humano nasce
em um estado de completa dependência, e afirma: "No entanto, Leonardo pôde
dispensar este apoio; não teria podido fazê-lo se nos primeiros anos de sua
vida não tivesse aprendido a viver sem o pai" (Freud, 1910/1969, p. 112).
Relacionando aquela
dependência inicial à necessidade de uma autoridade, Freud conclui que o
complexo parental se encontra também nas raízes da necessidade de religião,
pois o "sentimento religioso" se origina na e com a constatação da
longa dependência e fragilidade humana, estendidas para além da vida cotidiana.
Em vista disso, Freud consegue estabelecer o motivo pelo qual a religião se faz
uma neurose coletiva e livra o sujeito de uma neurose individual:
A proteção contra doenças
neuróticas que a religião concede aos seus crentes é facilmente explicável: ela
afasta o complexo parental, do qual depende o sentimento de culpa, quer no
indivíduo, quer na totalidade da raça humana, resolvendo-o para ele, enquanto o
incrédulo tem que resolver sozinho seu problema. (Freud, 1910/1969, p. 113)
Pouco depois de escrever
sobre as teorias sexuais infantis e refletir sobre o papel que pais, educação e
sociedade exercem sobre as mesmas, em 1908, Freud escreve o artigo "Moral
Sexual 'Civilizada' e Doença Nervosa Moderna", sob a influência do livro “Ética sexual” de Von Ehrenfels
(1907). Segundo nota do tradutor inglês, este artigo é a primeira das longas
exposições que Freud faz sobre o antagonismo entre a civilização e a demanda
pulsional. Escritos anteriores, no entanto, já revelavam a convicção que Freud
tinha a esse respeito, como, por exemplo, em cartas enviadas a Fliess e em seus
"Três Ensaios sobre a Teoria da Sexualidade", publicado em 1905, onde
afirma que é inversa a relação existente entre a civilização e o livre desenvolvimento
da sexualidade.
Todas essas considerações
convergem para um caminho inevitável: buscar a origem da culpa e explicar o
surgimento da civilização, da moral e, inclusive, da religião. Em 1913, Freud
publica seu inestimável "Totem e Tabu – Alguns Pontos de Concordância
entre a Vida Mental dos Selvagens e dos Neuróticos", onde discorre sobre a
horda primitiva e os dois crimes fundantes: o incesto e o parricídio (homicídio
praticado pelo filho contra o pai).
"Totem e Tabu"
foi uma das mais brilhantes contribuições teóricas na explicação da relevância
do sentimento de culpa no sujeito. A partir de estudos antropológicos sobre
comunidades primitivas ainda existentes são abordados ritos e proibições
fortemente arraigadas, como, por exemplo, o horror ao incesto e a exogamia. Em
seu texto, Freud sugere que existem inúmeras semelhanças e pontos de
concordância entre a psicologia dos povos primitivos – retratada pela
antropologia social – e a psicologia dos neuróticos, foco da psicanálise. Nesse
sentido, o estudo da primeira teria muito a contribuir com o desenvolvimento da
psicanálise. É importante destacar também a relevância da infância, uma vez
que, para Freud, o homem selvagem e o neurótico assemelham-se muito às
crianças. Um neurótico apresenta invariavelmente certo grau de infantilismo
psíquico: ou falhou em libertar-se das condições psicossexuais que predominavam
em sua infância (inibição) ou a elas retornou (regressão).
Freud elege para seu
estudo em "Totem e Tabu" o povo aborígene da Austrália, pois são
descritos por antropólogos como "um dos mais miseráveis e atrasados
selvagens". Um dos elementos que mais lhe chama a atenção nas tribos
daquele povo é o horror ao incesto e uma preocupação excessiva com sua
prevenção, sendo este punido até quando ocorre entre animais. Pois, se aquele
povo primitivo, canibal e desnudo, não desenvolveu qualquer tipo de moral
civilizada, era de se esperar que não houvesse restrições à vida sexual e que
sua sexualidade não se sujeitasse a normas. No entanto, o que se verificou foi
que "eles estabelecem para si próprios, com o maior escrúpulo e o mais
severo rigor, o propósito de evitar relações sexuais incestuosas" (Freud,
1913/1969, p. 7). É como se houvesse uma espécie de "lei" contra a
união e o relacionamento sexual entre pessoas de um mesmo clã, ainda que sejam
de famílias biológicas diferentes. Tal constatação, apesar
de ir contra o esperado, não constitui surpresa para Freud, já que muito antes
ele imaginava uma possível relação entre a proibição do incesto e a
civilização: em 1897, Freud escreveu a Fliess ("Rascunho N" (Freud,
1897b/1969)) que o incesto é antissocial e a civilização consiste numa
progressiva renúncia a ele.
Entre os aborígenes da
Austrália, o tabu do incesto é tão forte que a sua violação é vingada de
maneira enérgica por todo o clã, diferentemente do que ocorre quando outras
proibições (matar o totem, por exemplo) são violadas e o "castigo",
isto é, a punição, é automática, como se um desastre ou infortúnio atingisse,
inevitavelmente, o violador. Freud percebe que naquele caso específico a
comunidade tende a punir os transgressores de maneira brutal. Com isso,
suspeita que deveria existir também uma culpa coletiva, já que, se o
transgressor ficasse imune, todo o povo poderia ser punido ou castigado; Freud
passa então a abordar a culpa a partir da necessidade de castigo.
1.3 – Culpa Coletiva
Para compreender e
explicar a culpa coletiva, Freud precisou recorrer ao mito científico
darwiniano da Horda Primeva em que os filhos teriam se unido para assassinar o
Pai primevo. Mas com a morte do pai, ao invés de satisfação e liberdade, os
filhos se depararam com o remorso e o temor de uma punição; assim, adotaram um
totem (frequentemente um animal) como substituto sagrado do pai, o qual era
venerado e inviolável, provocando uma espécie de reconciliação que
pudesse amenizar a culpa e ajudar a esquecer o crime cometido. Por esse motivo,
o totemismo pode ser considerado uma primeira tentativa de religião. A religião
totêmica teria surgido do sentimento filial de culpa, num esforço para mitigar
esse sentimento e apaziguar o (furor do) pai com a mais cautelosa obediência a
ele; para Freud, todas as religiões posteriores são vistas como tentativas de
solucionar o mesmo problema.
Em 1939, em três ensaios
compilados em "Moisés e o monoteísmo", Freud apresenta algumas teses
acerca da religião monoteísta. Dentre elas, a tese elaborada sobre o
assassinato de Moisés traz um desdobramento importante à compreensão da origem
da culpa coletiva, pois acrescenta esse fardo, mais um assassinato, à sua
fonte. Freud destaca que aquela culpa ultrapassou os limites grupais: "ela
tinha se apoderado de todos os povos do Mediterrâneo, como um vago mal-estar,
como uma premonição cataclísmica" (Freud, 1939/1969, p. 131).
Ainda em "Totem e
Tabu", Freud faz algumas analogias entre a neurose obsessiva e a religião
ao identificar que as proibições obsessivas envolvem renúncias e restrições
bastante extensivas, assim como as proibições do tabu e da religião, e percebe
que algumas restrições podem ser suspensas se certas ações forem realizadas;
assim, tais ações logo se tornam atos compulsivos que se repetirão
indefinidamente: elas são da mesma natureza que a expiação, a penitência, a
purificação ou até as medidas defensivas. O sentimento moral procede da mesma fonte
da qual se originou a religião, porém esse é fruto simultaneamente da exigência
da sociedade e da penitência que o sentimento de culpa estabelece.
Após "Totem e
Tabu", a questão da culpa coletiva ou individual aparecerá em 1914 no
texto "Sobre o Narcisismo – uma Introdução", quando Freud fala sobre
o ideal do eu e a instância resultante, o supereu. Com o conceito de narcisismo
Freud avançou bastante na compreensão do sentimento de culpa, pois a construção
de uma noção de ideal do eu e, posteriormente, de supereu,
exemplifica a exigência da qual se deriva a culpa no sujeito. Laplanche e
Pontalis apontam o ideal do eu como uma formação intrapsíquica relativamente
autônoma que serve de referência ao eu para apreciar suas relações afetivas e
afirmam que "sua origem é principalmente narcísica" (Laplanche &
Pontalis, 2004, p. 222). Freud afirma que o ideal do eu revela um importante
cenário para a compreensão da psicologia de grupo, pois além de seu aspecto
individual, esse ideal apresenta um aspecto social, que constitui o ideal comum
de uma família, uma classe ou uma nação. Para Freud, o ideal vincula não
somente a libido narcisista da pessoa, mas também uma quantidade considerável
de sua libido homossexual, que retorna ao eu.
É através dessa
compreensão que Freud apreende o sentimento de culpa em sua esfera social:
"A falta de satisfação que brota da não realização de um ideal libera a
libido homossexual, sendo esta transformada em sentimento de culpa (ansiedade
social)" (Freud, 1914/1969, p. 108). Sabe-se que originalmente, na vida
psíquica, o sentimento de culpa era produto do temor da punição pelos pais,
isto é, a expressão do medo de perder o amor dos pais; mais tarde os pais são
substituídos por um número indefinido de pessoas na comunidade, o que leva à
"ansiedade social", que, apesar de se apresentar enquanto culpa
individual, nasce graças à vivência coletiva.
Em 1915, Freud descreve o
sentimento de culpa e o relaciona à atitude adotada diante da morte; em
"Reflexões para os Tempos de Guerra e Morte" ele fala que a história
primitiva da humanidade está repleta de assassinatos e aponta que o obscuro
sentimento de culpa ao qual a humanidade tem estado sujeita desde épocas
pré-históricas e que, em algumas religiões, foi condensado na doutrina da culpa
primeva, do pecado original, é provavelmente o resultado de uma culpa de
homicídio em que teria incorrido o homem pré-histórico. No mesmo texto Freud
discorre sobre a ambivalência de sentimentos que se apresentava no período de
guerra, pois ao mesmo tempo em que o homem podia matar seus inimigos sem o
menor escrúpulo, ele realizava rituais de purificação e isolamento para
livrar-se da culpa decorrente de seu ato e do medo da vingança do espírito
morto.
Segundo Freud, o lado de
um corpo sem vida, passou a existir não só a doutrina da alma, a crença na
imortalidade e uma poderosa fonte de sentimento de culpa do homem, mas também
os primeiros mandamentos éticos. A primeira e mais importante proibição feita
pela consciência que despertava foi: não matarás. (Freud, 1915b/1969, p. 305). Concomitante
à exigência ética havia o medo da própria morte, que também é reflexo do
sentimento de culpa.
Com a formulação do
complexo de Édipo, o sentimento (universal) da culpa é presentificado e
revivido individualmente, no que Freud identifica como intensos desejos de
morte (desejo de matar o pai); estes podem se transfigurar em medo consciente
da própria morte (como vingança) graças à ação da instância interna opressora
que se origina com a resolução do Édipo – o supereu. Para Freud, à
época do crime primevo, a autoridade era externa ao sujeito; agora, com a
emergência do supereu e a internalização das normas, a instância opressora lhe
é interna. Isso configura um problema: apenas uma renúncia não seria
suficiente, uma vez que o desejo persiste e não escapa ao supereu. A culpa é
compreendida, portanto, como sendo a forma pela qual o eu percebe a crítica do
supereu. É, pois, um sentimento de indignidade. Há um ideal do eu que
"critica" o eu e este se sente indigno do ideal.
Finalmente, em "O
mal estar na cultura" (1930 [1929]), Freud reconhece duas origens para o
sentimento de culpa: a angústia diante da autoridade, e, posteriormente, a
angústia diante do supereu. A culpa se delineia, então, não mais como um
sentimento difuso, e sim um sentimento onipresente e universal: uma
infelicidade interior contínua. No texto, fica claro que a sobrevivência da
civilização só é possível com a exigência da supressão e renúncia dos impulsos
do sujeito, o que intensifica o sentimento de culpa. Assim, para a
sobrevivência da civilização e evolução da cultura existem elevadas normas de
conduta moral às quais cada pessoa deve se adequar, controlando seus impulsos e
renunciando a satisfações. Portanto, como Freud afirmou em O mal-estar,
"pode-se representar o sentimento de culpa como o mais importante problema
no desenvolvimento da civilização" (Freud, 1930[1929]/1969, p. 96).
Freud constatou, pois, o
percurso das exigências às quais o sujeito, em toda a história, se submete:
primeiramente é obrigado a inibir seus impulsos pela soberania do pai primevo,
posteriormente, se submete à lei paterna no complexo de Édipo, até se
restringir pela internalização da moral na instância do supereu, represar seus
impulsos pelas normas religiosas e, finalmente, se enquadrar aos padrões
sociais, sempre em razão da culpa intrínseca, à qual não é capaz de escapar.
Pode-se dizer, portanto,
que a culpa individual está íntima e diretamente relacionada à culpa coletiva e
que decorre não só de seu histórico, mas é produto da condição de dependência
primária do ser humano e de sua vivência grupal.
1.4 – Sentimento Inconsciente de culpa
A questão do inconsciente não apenas perpassa toda
a teoria freudiana como também é uma das noções mais essenciais à psicanálise.
Desde o "Projeto para uma Psicologia Científica" (1895) Freud se
interessa por estudar mecanismos psíquicos. Até formular suas duas tópicas do
aparelho psíquico Freud atravessa uma trajetória repleta de percalços e evolui
de uma noção baseada em elementos quantitativos (impulsos neurológicos) à
dinâmica qualitativa do psiquismo. Em "A Interpretação dos Sonhos"
(que começou a ser escrita em 1895 e foi publicada em 1899) Freud dá um salto
qualitativo na teoria psicanalítica ao abandonar a supervalorização da
consciência e destacar que o inconsciente é a verdadeira realidade psíquica, de
maneira a assegurar que a interpretação é a via real que leva ao conhecimento
das atividades inconscientes.
Em 1901, no capítulo "Determinismo, crença no
acaso e superstição" de "Sobre a Psicopatologia da Vida
Cotidiana" Freud recorre ao exemplo clínico da paranoia para demonstrar a
existência de conhecimento inconsciente, uma vez que considera que não há nada
que possa ser arbitrário ou indeterminado no psiquismo. Neste, a culpa aparece
num exemplo da ocorrência de um número que um leitor relatou a Freud: ao ler
que todo número evocado à consciência de modo aparentemente arbitrário tem um
sentido definido, o leitor resolveu testar essa hipótese, pensou em um número e
analisou o que poderia ter determinado sua escolha, até que chegou a números da
Biblioteca Universal e percebeu que o número que inicialmente lhe ocorrera,
quando decomposto, chega ao número das peças Menschenhass und Reue (Misantropia
e remorso) e Die Schuld (A culpa) e conclui por si mesmo:
"Meu estado psíquico atual é de misantropia e remorso.... Sou
constantemente atormentado pela ideia de que, por minha culpa, não cheguei a
ser o que minhas aptidões teriam permitido" (Freud, 1901/1969, p. 292).
No mesmo capítulo, Freud fala sobre a superstição
ser uma expectativa de infortúnio: uma pessoa que deseja o mal a outrem, tendo
sido educada com preceitos morais e, por isso, recalcado sua hostilidade no
inconsciente "será especialmente propensa a esperar o castigo por sua
maldade inconsciente como um infortúnio que a ameaça de fora" (Freud,
1901/1969, p. 311). Esse "castigo" diz respeito à necessidade de
punição que, atrelada à culpa [inconsciente], pode aparecer de diversas formas.
Freud ainda não falava de sentimento inconsciente de culpa, mas, ao investigar
o determinismo psíquico que se apresenta nos atos falhos e se revela no
mecanismo da formação dos sonhos, constatou expressões inconscientes da culpa.
Em 1906 Freud foi convidado a realizar uma
conferência a estudantes de Direito sobre a psicanálise, a experiência de
associação livre enquanto método de investigação e a teoria dos complexos de
Zurique. Essa conferência é apresentada no texto "A psicanálise e a
determinação dos fatos nos processos jurídicos", do mesmo ano. Freud fala
sobre a falta de fidedignidade no relato de testemunhas, o que leva aquele
público a se interessar pelo "método de investigação que se propõe a
induzir o próprio réu a estabelecer sua culpa ou inocência" (Freud, 1906/
1969, p. 95).
A investigação psicanalítica muito auxiliou na
revelação de conteúdos inconscientes nos neuróticos e, nesse sentido, aproximou
o neurótico do criminoso, uma vez que se depara com os crimes do incesto e do
parricídio no complexo de Édipo. Outra semelhança é o fato de que ambos possuem
um segredo oculto; no entanto, o criminoso oculta algo intencionalmente,
enquanto, para o neurótico, o segredo está oculto de sua própria consciência,
isto é, não está apenas esquecido, mas fortemente recalcado. É como se o
neurótico ignorasse seu próprio segredo e o criminoso simulasse tal ignorância.
Além disso, os segredos oferecem resistência para serem revelados, porém, a
resistência no tratamento analítico situa-se na fronteira entre o consciente e
o inconsciente e pode ser combatida pelo próprio paciente através de esforços
conscientes, objetivando a cura; o que não ocorre com o criminoso, pois este não
cooperará, já que seu objetivo é manter o crime em sigilo, não revelá-lo, e sua
resistência origina-se totalmente da consciência.
Assim, Freud retoma a noção de determinismo
psíquico na tentativa de articular uma possível contribuição da psicanálise
para aqueles casos, mas aponta outra dificuldade, uma vez que o material
psíquico recalcado no neurótico atormenta o paciente da mesma forma que uma
consciência culpada. E assinala uma complicação: "Os senhores, em sua
investigação, podem ser induzidos a erro por um neurótico que, embora inocente,
reage como culpado devido a um oculto sentimento de culpa já existente nele e
que se apodera da acusação." (Freud, 1906/1969, p. 103). Nessa conferência
aparece o questionamento de Freud acerca da qualidade inconsciente do
sentimento de culpa, enquanto uma possibilidade, mas esta ainda não é
diretamente atribuída à culpa.
Freud retoma a infância para elaborar a hipótese da
culpa não consciente e cita um exemplo facilmente verificável, quando uma
criança acusada de uma transgressão qualquer nega sua culpa, mas chora como um
condenado. Freud afirma que mesmo parecendo que a criança mentiu ao alegar
inocência, muitas vezes ela de fato não cometeu a transgressão da qual é
acusada, mas o seu choro pode denunciar uma outra falta qualquer que tenha
cometido. Segundo Freud, "[a criança] fala a verdade ao negar ser culpada
da primeira transgressão, ao mesmo tempo em que revela seu sentimento de culpa
proveniente de outra falta" (Freud, 1906/ 1969, p. 103). Em
"Dostoiévski e o Parricídio", ao discorrer sobre o complexo de Édipo
masculino, afirma que é pelo temor à castração que o menino abandona seu desejo
de possuir a mãe e livrar-se do pai; e acrescenta: "na medida em que esse
desejo permanece inconsciente, constitui a base do sentimento de culpa"
(Freud, 1928/1969, p. 189).
Em "Atos obsessivos e práticas
religiosas" (1907), segundo nota do tradutor, surgirá pela primeira vez
explicitamente o termo "sentimento inconsciente de
culpa", que desempenhará papel tão importante nos escritos posteriores de
Freud, como em "O Ego e o Id" (1923). Naquele texto, Freud afirma que
nos atos obsessivos, por mais que não pareça, tudo tem sentido e pode ser
interpretado; afirma ainda que "o ato obsessivo serve para expressar
motivos e ideias inconscientes" (Freud, 1907/1969, p. 113), uma vez que a
pessoa que obedece à compulsão o faz sem compreender- lhe o sentido. Freud fala
também sobre certo sentimento furtivo de angústia, como uma expectativa de
infortúnios ligada, através da ideia de punição, à percepção interna dos
sentimentos hostis recalcados. Essa mesma expectativa apareceu em relação à
superstição citada anteriormente; o que reafirma a ligação entre o sentimento
inconsciente de culpa e a necessidade de punição.
Ao estudar os atos obsessivos, Freud conclui:
"Pode-se dizer que aquele que sofre de compulsões e proibições comporta-se
como se estivesse dominado por um sentimento de culpa, do qual, entretanto,
nada sabe, de modo que podemos denominá-lo de sentimento inconsciente de
culpa." (Freud, 1907/1969, p. 113; itálicos nossos). Nasio (2007) explica
que a obsessão é resultado de um deslocamento da angústia de castração que
passa do inconsciente para o consciente, cristalizando-se na forma de um
sentimento de culpa; segundo ele, "a angústia inconsciente de ser
espancado pelo pai transforma-se em angústia de ser punido pelo próprio
supereu" (p. 116). Essa angústia que envolve a expectativa de um castigo é
o próprio sentimento de culpa.
Em "Totem e Tabu" (1913) Freud esboça
certa tentativa de apreender a relação do sentimento de culpa com o
inconsciente. Freud entende que as expressões do ódio não eram permitidas na
horda primeva – o que fazia com que aquele afeto se mantivesse recalcado no
inconsciente – e a violação de qualquer norma gerava certo sentimento de culpa,
que foi intensificado com o parricídio. Ao chamar a atenção para o fato de uma
sensação de culpa ter em si muito da natureza da angústia, Freud descreve essa
sensação como um "pavor da consciência". É essa relação entre a culpa
e a angústia que, neste momento, possibilita a visualização das fontes
inconscientes:
A psicologia das neuroses nos fez ver que, se
impulsos cheios de desejos forem reprimidos, sua libido se transformará em
angústia. E isto nos faz lembrar que há algo de desconhecido
e inconsciente em conexão com a sensação de culpa, a saber, as razões para o
ato de repúdio. O caráter de ansiedade que é inerente à sensação de culpa
corresponde ao fator desconhecido. (Freud, 1913/1969, p. 43)
Foi somente em 1915, no artigo "O Inconsciente",
que a questão da culpa inconsciente foi esclarecida. Neste, Freud diferencia
ideias de afetos: as primeiras seriam traços de memória que aparecem como
representações psíquicas, enquanto os afetos e emoções correspondem a processos
de descarga, cujas manifestações finais são percebidas como sentimentos. Com
essa distinção, Freud questiona a possibilidade de haver impulsos, emoções ou
sentimentos inconscientes, já que são sentidos e percebidos pela consciência, e
conclui: "é certamente da essência de uma emoção que estejamos conscientes
dela... Assim, a possibilidade do atributo de inconsciência seria completamente
excluída no que diz respeito a emoções, sentimentos e afetos" (Freud,
1915a/1969, p. 182). Nesse mesmo artigo, Freud afirma ser possível falar sobre
moção pulsional inconsciente, mas destaca que, ao denominar como inconsciente
um sentimento ou pulsão, faz-se necessariamente referência a algo cuja
representação ideacional é inconsciente. Freud entende que pode ocorrer de uma
emoção ou afeto ser sentido e mal interpretado, isso porque o recalque do
representante adequado daquele afeto forçou-o a se ligar a outra ideia; assim,
a consciência considera, erroneamente, o afeto sentido como sendo expressão da
ideia substituta. É importante destacar que é exatamente esse processo que
ocorre na neurose obsessiva.
Considerando o recalque sofrido pela ideia
original, Freud explica a licença da denominação "sentimento inconsciente
de culpa":
Se restaurarmos a verdadeira conexão, chamaremos o
impulso afetivo original de inconsciente, contudo, seu afeto nunca foi
inconsciente, o que aconteceu foi que sua ideia sofreu repressão. Em geral, o
emprego das expressões "afeto inconsciente" e "emoção
inconsciente" refere-se a vicissitudes sofridas, em consequência da
repressão, pelo fator quantitativo no impulso instintual. (Freud, 1915a/1969,
p. 182). Freud afirma que as ideias inconscientes, mesmo após o recalque,
continuam a existir e tentam se manifestar na consciência e que o afeto inibido
em seu desenvolvimento pode aparecer enquanto angústia.
Em 1923, Freud publica "O Ego e o Id", em
que trata da segunda tópica do aparelho psíquico, na qual se apresentam as
estruturas do eu, do isso e do supereu. A partir de uma perspectiva dinâmica,
Freud analisa a função do eu, que deve conciliar as pressões do isso com os
ideais do supereu e com a realidade externa. O importante aqui é que a
instância inconsciente deixa de ser tratada somente como um lugar para então
ser compreendida em sua dimensão dinâmica e econômica, tornando-se a qualidade
que perpassa todas as estruturas – isso, eu e supereu. Assim, Freud afirma que,
desde o início, atribuiu às tendências morais do eu a função de incentivar o
recalque. Ele explica que, se o conteúdo recalcado tiver acesso à consciência, a
autocensura ligada a ele irá emergir sem modificações; porém, como o conteúdo
emerge de maneira disfarçada (por exemplo: sonhos, atos falhos e chistes), não
atrai atenção [consciente] para si, o que aparece é simplesmente um sentimento
difuso de culpa sem qualquer conteúdo e, por isso, denominado inconsciente.
Ao considerar a dinâmica do inconsciente, Freud
aponta que a culpa inconsciente se manifesta também no tratamento analítico e
explica certa resistência derivada do eu durante a análise: a reação terapêutica
negativa, apresentada no quinto capítulo, intitulado "Estados de
dependência do eu", quando elucida importantes aspectos da dinâmica e
funcionamento do supereu. Segundo Freud, "o sentimento de culpa que está
encontrando sua satisfação na doença se recusa a abandonar a punição do sofrimento"
(Freud, 1923/1969, p. 62). O sentimento de culpa se apresenta nesses casos como
uma resistência à cura, bastante difícil de superar.
O supereu, que também é,
em grande parte, inconsciente, é então apresentado, em suas relações com o
ideal do eu, como uma instância autocrítica capaz de julgar e oprimir o eu;
Freud pontua a censura moral e afirma que "a tensão entre as exigências da
consciência e os desempenhos concretos do eu é experimentada como sentimento
inconsciente de culpa" (Freud, 1923/1969, p. 49). Em 1924, no texto
"O problema econômico do masoquismo", Freud volta a essa questão e
afirma que a utilização do termo "sentimento inconsciente de culpa" é
psicologicamente incorreta, já que sentimentos não podem ser descritos como
"inconscientes". Porém, a partir da necessidade de punição, explica
que a tensão entre o eu e o supereu refere-se à reação do eu mediante a
percepção de que não correspondeu às exigências de seu ideal, ou seja, a tensão
sentida como sentimento de culpa refere-se à angústia percebida pelo eu, sendo
que esta última é que é inconsciente.
Agora é possível
compreender que os afetos que são denominados como "inconscientes"
foram inibidos em seu desenvolvimento pelo recalque e que, na verdade, o que é
inconsciente não é o afeto, mas sim a representação original do mesmo e a carga
libidinal ligada àquela. Portanto, falar de "sentimento inconsciente de culpa"
significa dizer que o representante psíquico original da culpa foi recalcado.
2
– Rejeição (Verwerfung)
Diante da Verwerfung deparamos
com um mecanismo de exclusão que Freud citou com maior ênfase em "O Homem
dos Lobos" (FREUD, 1918[1914]/1982). A tradução hoje utilizada nas Edições
Standard Brasileira das Obras Completas é a de "rejeição". Em inglês,
encontramos repudiation ou foreclosure, e em espanhol,
repudio. A palavra Verwerfung significa "Não aceitar algo,
porque se acha ruim: um pensamento, um plano, uma proposta"
(LANGENSCHEIDT, 2003, p.1133). Rejeição é: "Ato ou efeito de
rejeitar" (FERREIRA, 1986, p.1478), e rejeitar significa: "1. Lançar fora, largar, depor (...) 2. Lançar de
si; tirar de si; repelir (...) 3. Lançar de si; expelir; vomitar, regurgitar
(...) 4. Não admitir, recusar (...) 5. Não aprovar; reprovar, desaprovar (...)
6. Ter em pouca ou nenhuma conta; desprezar, desdenhar (...) 7. Defender-se de,
repelir (...) 8. Opor-se ou negar-se a (...) 9. Atirar, arremessar, lançar,
arrojar (...) 10. Repelir, afastar, apartar (...)" (idem)
"Repúdio"
(espanhol) é o "Ato ou efeito de repudiar" (p.1491), e repudiar:
"1. Rejeitar (a esposa) legalmente; divorciar-se de (a mulher) 2.
Rejeitar, repelir, recusar (...) 3. Abandonar, desamparar." (idem). Das
duas, a tradução que nos parece mais adequada é "rejeição", pois
engloba a não-aceitação, ou seja, a oposição pelo sujeito de algo ruim, o que
está presente na palavra alemã.
“Forclusion” foi o termo que Lacan utilizou para traduzir a
palavra Verwerfung que está contida em algumas obras do Freud, que significa
rejeição. Lacan retirou esse termo do vocabulário jurídico, que significa a
abolição simbólica de um direito que não foi exercido no prazo prescrito.
O primeiro texto de Freud onde aparece a Verwerfung caracterizada como
mecanismo de rejeição é “As neuropsicoses de defesa” do ano de 1894. Freud
estava nesse momento recebendo muitos pacientes e começou a perceber que eles
gozavam de boa saúde até o momento em que o ego era confrontado com uma
experiência aflitiva que o sujeito decidia esquecê-la, porque ele não sabia
lidar com tal experiência. Esse esquecimento é o que produzia os sintomas na
histeria, na obsessão e na psicose, esse esquecimento, nada mais é do que a
operação da defesa. Que na obsessão a ideia intolerável é separada do seu
afeto, mas continua na consciência ainda que enfraquecida e isolada. Já na
psicose prevalece uma defesa muito mais poderosa e bem sucedida, onde o ego
rejeita a ideia juntamente com o seu afeto e comporta-se como se aquela ideia
jamais tivesse ocorrido. Assim quando a defesa é levada a cabo, o ego se
encontra num estado de confusão alucinatória.
Em 1899 Freud questiona
uma antiga formulação sua em que ele acreditava que a escolha da neurose estava
relacionada com a idade que o trauma sexual ocorria. Freud abandona esta crença
e introduz na carta a noção de um ponto de fixação do sujeito no
desenvolvimento libidinal, que no caso da paranoia seria o seu extrato sexual
mais primitivo que é o autoerotismo. É importante lembrar que Freud ainda não
tinha construído o conceito de narcisismo, que só começou a ser formulado em
1911 no caso Schreber e melhor trabalhado em 1914 no texto sobre o narcisismo.
Nesses textos fica muito claro que o ponto de fixação da paranoia é o
narcisismo e o autoerotismo é o ponto de fixação da esquizofrenia.
Em 1918, Freud escreve o
caso do “O Homem dos Lobos” que é um caso polêmico quanto ao seu diagnóstico na
história da psicanálise. Apesar de Freud acreditar se tratar de uma neurose
obsessiva, é possível perceber Freud com dúvidas em relação ao diagnóstico. É o
próprio Freud que afirma que antes do “O Homem dos Lobos” ser consultado por
ele, já tinha passado por alguns sanatórios e o médico considerado um dos
maiores especialista de seu tempo o Kraepelin o diagnosticou como um caso de
insanidade maníaco-depressivo, ou seja, um psicótico. É justamente no caso do
“O Homem dos Lobos” que Freud usa o termo Verwerfung se referindo diretamente a
castração, o Homem dos Lobos rejeita essa ideia, e essa rejeição aqui significa
não ter nada a ver com a castração.
A representação de “coisa”
é rejeitada pelo mecanismo da Verwerfung (rejeição), permanecendo, portanto,
psiquicamente inconsciente.
Mas surge aqui uma
questão: de que inconsciente se trata?
Segundo Freud, a rejeição
ataca e desfaz a representação de “coisa” (isto é, a ligação libido/ traço
mnésico), o que geraria dois destinos diferentes de seus componentes:
a – a percepção ligada
aos traços mnésicos é rejeitada no sistema percepção e Consciência (Pc-Cs), não
no id, e permanece inconsciente nessa parte do eu, o que produz uma divisão do
eu. A percepção é rejeitada, mas para uma exterioridade psíquica, isto é, ela
volta à extremidade perceptiva, para, então, retornar, por exemplo:
- sob forma de alucinação
(a alucinação apresenta o percebido de maneira deformada, pelos processos
primários, mas esse percebido constitui, por outro lado, um núcleo de verdade);
- ou então no delírio,
que é uma tentativa de elaborar uma representação (ou uma simbolização) de
compensação ou substitutiva da percepção rejeitada (uma espécie de substituto
de representação verbal), permanecendo esta o elemento central, embora não
apareça claramente no delírio;
b – essa reprojeção da
percepção na extremidade perceptiva (aquilo que retorna) é possibilitada pelo
fato de que a rejeição retira o investimento libidinal da representação de
coisa, que assim volta a assumir o caráter de percepção. Essa libido retirada
do objeto (ao contrário do luto, em que o objeto é retirado da libido)
retornará à extremidade perceptiva e se religará à percepção; essa carga
libidinal é a causa do fenômeno de crença (a alucinação, o retorno da percepção,
é tida como realidade) e, portanto, do fenômeno alucinatório. Porém, nesse
ínterim, a libido retirada da representação de objeto volta para o inconsciente
(mas desta vez, trata-se do id), sofre transformações (por exemplo, o desejo se
converte em hostilidade), antes de voltar à extremidade perceptiva.
É importante destacar que
isso produz uma dupla inscrição e, portanto, uma divisão no eu, entre o eu e o
sistema mnésico: se, por um lado, o percebido é rejeitado para uma
exterioridade psíquica inconsciente, por outro, faz-se uma outra inscrição no
eu, aquela de um traço vazio ou de um branco no pensamento (pensemos na bela
fórmula de Winnicott, segundo a qual algo aconteceu, mas não encontrou lugar
para inscrever-se e ser mentalizado), ou então a elaboração de um delírio
ligado às formas do retorno daquilo que foi rejeitado. A divisão psicótica é
essa tensão constante entre o eu do rejeitado e a coisa rejeitada que retorna.
Quanto ao delírio,
podemos entendê-lo como tentativa de atribuição daquilo que é rejeitado. É
nesse sentido que o rejeitado contém um núcleo de verdade (a percepção) e é
esse reconhecimento que está em questão na transferência psicótica: o não-atribuído
e, portanto, não-experimentado retorna para ser experimentado, atribuído e
depois elaborado; é isso que geralmente toma o analista nessa transferência.
A representação e sua
percepção são aceitas num primeiro tempo, até o ponto de serem conscientes, mas
podem ser julgadas inaceitáveis a posteriori. Então, intervém o mecanismo da
recusa ou desmentida (Verleugnung) que apaga a percepção como se nunca tivesse
acontecido, voltando assim a ser inconsciente (mas no sistema Pc-Cs e não no
id) e sendo mantida pelo mecanismo da clivagem do eu. Existem então duas
correntes no eu: uma que recusa o significado da castração e a outra que
reconhece sua percepção.
Segundo o princípio da
dupla inscrição, existirá um traço no eu: se o elemento recusado permanecer inconsciente,
o retorno do recusado se dará pelo investimento da percepção contígua àquela
que é recusada. Essa percepção contígua, por sua vez, será consciente, por
exemplo, sob a forma do fetiche. Essa dupla inscrição é mantida separada pelo
mecanismo da clivagem, o que faz com que os dois elementos possam perfeitamente
coexistir.
A questão é ainda mais
complexa quando se percebe que um elemento negado retorna e que, nesse momento,
pode ser negado por um mecanismo diferente, o que produzirá uma nova dimensão e
um outro circuito de retorno, etc. Freud nos dá um exemplo com o Homem dos
Lobos. De fato, Freud constata que existem três correntes na vida psíquica do
paciente:
- uma, a mais antiga, que
rejeita a castração: não há nenhum julgamento sobre sua existência como se não
existisse; então, o rejeitado retorna, aos cinco anos, na alucinação do dedo
cortado. Porém, devido à dupla inscrição, no lugar do que foi rejeitado,
funcionam a teoria da relação pelo ânus (o que mantém a crença na existência de
um único sexo, o masculino) e os sintomas histéricos (os intestinos);
Uma outra corrente mais
tardia, mas coexistindo com a primeira, reconhece a castração como fato e
subdivide-se em duas tendências:
- uma que a aceita e se
consola com a feminilidade como substituto (vertreten);
- a outra que se rebela e
cede à castração, com pavor.
Podem então coexistir na
psique várias camadas de elaborações, correspondendo cada uma a um trajeto no
sistema Pc-Cs, assim como podem coexistir – e nisso Freud insiste – mecanismos
de negação tais como o recalque, a recusa e a rejeição. Isso o levava a
sustentar que pode haver momentos alucinatórios ou acessos delirantes numa
neurose.
CONCLUSÃO - De acordo com o estudo realizado,
pude aprender que os sentimentos de culpa e a rejeição se acumulam deixando
marcas profundas na autoestima, porém tudo tem tratamento, uma reprogramação. Na
teoria freudiana a partir da trajetória realizada por Sigmund Freud em suas
obras completas no período entre 1892 e 1924, tentei demonstrar de que maneira
este conceito foi construído e se modificou juntamente com o desenvolvimento
desta teoria. Para isso, usei os escritos freudianos em ordem cronológica de
publicação e compreender, para além de suas manifestações, a origem do
sentimento de culpa e rejeição e seus desenvolvimentos, sendo assim, foi
possível explicar estes temas, possibilitando o estabelecimento de bases
sólidas pelas quais possa caminhar rumo a um entendimento da teoria
psicanalítica freudiana.
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Espero que gostem....
Bjksss......Graça e Paz!!!!